A cofundadora da TransEmpregos, Maite Schneider, fala sobre a inclusão de profissionais trans no mercado brasileiro. Para ela, somente quando as pessoas se sentem totalmente autênticas e conectadas com os lugares em que trabalham, é que podem atingir o seu potencial máximo.
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Confira a versão em texto desse papo maravilhoso com a Maite Schneider, cofundadora da TransEmpregos e com mais de 30 anos de ativismo pelos direitos humanos. O texto foi transcrito e editado.
Leo: Vou começar falando de pandemia.
Uma matéria recente do The Wall Street Journal trouxe a seguinte manchete: “trabalhar em casa ajudou algumas pessoas trans se adaptarem às suas novas identidades”. Queria saber se você sente isso também acontecendo no Brasil, por conta do home office?
Maite: Acho que tem acontecido, sim. Essas oportunidades acabam atingindo para além de fronteiras – seja de distanciamento ou por conta de região onde a pessoa mora. Ainda vemos muitos filtros seletivos que são totalmente arcaicos. Por exemplo: escolher por faculdade de primeira linha em detrimento de outra, e não por conhecimento. A região também faz com que algumas firmas aleguem uma dificuldade, mas sabemos que é um preconceito com relação a pessoas periféricas, normalmente, periféricas e pretas. Periféricas, pretas e trans que estão nesses lugares.
Com essa abertura do trabalho remoto, temos visto uma mudança. Na TransEmpregos, aumentou em 30% o número de vagas buscando o trabalho remoto. Primeiro, porque pode ser de qualquer lugar (antes as vagas acabavam concentradas no eixo SP-Rio, nas grandes capitais). Hoje em dia, tem em qualquer lugar.
O filtro seletivo está perdendo a validade, assim com essa história de faculdade de primeira linha, etc. Então, o home office tem ajudado, sim, que pessoas de outros lugares participem do processo, e as pessoas trans sofram menos preconceito durante esse caminhar, essa entrada dentro das empresas.
O que a empresa tem que focar é se a pessoa tem competência para desenvolver aquela demanda pedida.
As pessoas trans tinham uma abertura grande em profissões com pouca visibilidade (telemarkerting, logística, lugares em que você fica mais escondido e não tem contato direto com cliente). O cliente não te via, no máximo, te ouvia.
Muitos empresários tinham receio de contratar profissionais trans e colocar em outros lugares. Não sabiam como seria a aceitabilidade, se os clientes iriam gostar, se iriam perder público. Por conta disso, as primeiras incorporadoras a trabalharem com a empregabilidade de pessoas trans foram esses empregos. Hoje, ainda bem que está mudando. Vemos restaurantes super conhecidos parceiros da TransEmpregos que dizem: ‘eu quero que essa pessoa seja hostess do meu ambiente. Quero que ela esteja na linha de frente mostrar, sim, que a empresa faz uma politica afirmativa de inclusão’ e assume a bandeira. É muito legal ver que, em pouco tempo (7 anos de TransEmpregos), estamos vendo essa mudança. Mas queremos mais. Temos o propósito de não precisar existir quando completarmos 15 anos. Estamos caminhando.
Leo: todo dia que entro no LinkedIn, vejo a TransEmpregos celebrando um novo convênio sempre com empresas de muita reputação, grandes companhias. Como estão números das organizações considerando a pandemia?
Maite: Cresceu. Fechamos 717 empresas, em fevereiro. As últimas 200 que entraram vieram nos últimos 2 meses. Olha que acelerado! Foi mais de 315% esse crescimento. No começo, a gente que ia atrás, de maneira modesta. Agora, são 15 empresas ligando por dia e tenho que dizer que só temos agenda pra abril. Mas eu sempre falo: já temos uma cartilha, pode começar sem a gente. Não tem mistério. Explicamos tudo: sobre benefício, as questões que as empresas têm mais medo, banheiro, nome social… Enfim, tudo para que possam começar.
Leo: Essa consultoria é paga?
Maite: Tudo relacionado à empregabilidade na TransEmpregos é gratuito, e eu espero que continue até acabar. Já foram 7 dos 15 anos que a gente queria para terminar a TransEmpregos. Faltam 8, mas não me importo de terminar em 7, 6, 5.
Leo: Dessas empresas que têm chegado agora, a maioria delas têm programa de Diversidade e Inclusão? Você acha necessário ter um programa ou uma área específica para cuidar do tema?
Maite: Varia. Chega pessoas de todos os jeitos. Tem gente querendo começar a falar da diversidade desde o início, fazer a coisa certa desde o começo. Há empresas que já importaram os modelos de suas matrizes. E temos que considerar que o Brasil é um país gigantesco. É difícil colocar um plano de diversidade que atinja todo mundo. Só para ter uma ideia, o GPA tem 102 mil funcionários só no Brasil, a Atento tem 81 mil.
Então, não tem um jeito certo ou errado. Tem caminhos que as empresas podem tomar. Elas devem olhar para as suas identidades e decidir quão melhor.
A TransEmpregos ajuda qualquer empresa, de qualquer tamanho. Trabalhamos com multinacionais, startups, pessoas físicas. Tem crescido muito, inclusive, o número de pessoas físicas que contratam pessoas trans para serem babás, cuidadoras de idosos, jardinagem. É muito legal ver que essa mudança não é só do macro. Não precisa esperar o estado fazer, empresas fazerem…essa mudança pode acontecer no micro também. Quando o micro e o macro começarem a agir e entendermos que podemos ser parte da diferença que queremos, aí o mundo está feito. Poderemos viver o mundo que é bom para todos.
Leo: Sabemos que as startups têm uma cultura da inovação muito forte, quebra de algumas barreiras de estruturas, mais facilidade de fazer certas coisas do que nas grandes companhias. Como é a receptividade delas para as pessoas trans?
Maite: Elas vão aprendendo e fazendo. A startup é um lugar onde brota uma extrema capacidade de inovação. Em pouco tempo, algumas se transformam em unicórnio porque se permitem experenciar dentro dessa velocidade. O que não dá certo, eles já descartam. E, se deu certo, eles vão multiplicando em cima daquilo. As startups têm dado um bom exemplo também na questão da diversidade.
Leo: A vereadora Erika Hilton (mulher trans mais votada do Brasil nas eleições de São Paulo) disse recentemente, no Roda Viva, que, quando conseguirmos encontrar as palavras certas, que chegam às famílias, às pessoas que ainda não conseguimos atingir, será o momento crucial da nossa história. E, no mundo corporativo, você acha que já encontraram essa palavra, ou ainda é preciso encontrá-la para convencer algumas empresas a incluir pessoas trans?
Maite: A palavra é empatia. É a que vem com diversidade, e não tem como a gente dissociar. A empatia é um dos maiores ganhos que a diversidade traz, além da criatividade e inovação.
Quanto mais diversa é uma equipe, mais humana ela é. Você fortalece o sentimento de equipe, potencializa resultados, cria ambientes melhores com segurança psicológica, e as pessoas se sentem bem sendo quem são. E, assim, atingem o potencial de trabalho cada vez mais potente.
Então, eu acho que a palavra já foi encontrada, mas há interpretações diferentes. Muitas vezes, acham que empatia é dar aos outros aquilo que acha que eles merecem. Não é isso. Isso é benemerência, é culpa cristã, limpeza de consciência para dormir tranquilo à noite. Empatia é outra coisa: é se colocar como igual mesmo, mesmo sendo diferente. É construir algo melhor pra mim e para o outro…respeitando as devidas diferenças de cada um. Esse caminho tem sido atingido com empresas mais humanizadas, que começam a entender que é possível um capitalismo menos cruel, menos agressivo. Existiria um capitalismo fofo, agradável? Agradável? Sim, pode ser.
Você pode ter uma rede de acionistas, colaboradores, clientes, meio ambiente, sustentabilidade… pode haver um um ganha-ganha para todos. Todo mundo pode abrir mão um pouco do seu lucro para todos saiam ganhando. Empresas mais humanizadas são aquelas que estão no caminho da mudança, de uma verdadeira preocupação.
Leo: E isso independentemente de identidade de gênero, né?
Maite: Independentemente de identidade, orientação. Imagine esses outros fatores aí dentro de um mercado que sempre foi cruel, cobrador no pior sentido. Se agregarmos essas questões de identidade, orientação, etc, imagine o lugar de caos que você vive?
Hoje, você vê empresas que eram um verdadeiro caos, de muita cobrança, insegurança psicológica e terrores para saúde mental, se transformando em cais, em porto seguro. Muitas entenderam que precisam ter missão e valores agregados ao propósito das pessoas. É muito mais legal quando esse match acontece. Na TransEmpregos, 50% das empresas já seguem esse caminho mais humanizado. As outras estão tentando entender como fazer. Tá se construindo um caminho bonito.
Leo: Quais foram os aprendizados que vocês tiveram desde o início da TransEmpregos? Precisaram fazer mudanças para melhorar os resultados?
Maite: Logo no começo, aprendemos que inclusão e diversidade são coisas bem distintas. Como eu vim das artes, eu era leiga e achava que falar de inclusão era a mesma coisa que diversidade. Lá em 2013, no começo, a Márcia Rocha (outra fundadora da TransEmpregos) ia nas empresas, reuniões. Era no momento que tava começando o Fórum de Empresas LGBTI+, com o Reinaldo Bulgarelli. Eram poucas na época, como IBM e Carrefour. E as empresas começaram a se interessar mais, embora ainda duvidassem se havia pessoas trans com determinadas qualificações.
Hoje em dia, estamos com quase 23 mil currículos de todos os estados, sendo que 40, 2% desse total tem graduação, mestrado ou doutorado. Contrariam a expectativa de algumas empresas. Temos pessoas com dois doutorados, por exemplo, que não conseguem emprego pelo simples fato de serem trans.
No ano passado, a TransEmpregos ajudou na contratação de 799 pessoas trans.
Outra que foi um aprendizado é que, no começo, algumas empresas manifestavam interesse em incluir pessoas trans. Nós mandávamos, mas nem nos preocupávamos em saber como era o ambiente desse lugar. Depois, acabávamos encontrando muitas delas que tinham pedido demissão. O motivo era que o ambiente era extremamente ruim, as pessoas olhavam para elas toda vez que iam ao banheiro, algumas criaram um terceiro banheiro como se fossem bichos, não respeitavam o nome social, não se sentiam parte da equipe.
A pessoa trans saia mal de ter entrado, da opressão, e falava mal da empresa. A companhia, por sua vez, falava mal das pessoas trans, achando que elas eram assim, sem nem entender que a cultura organizacional era agressiva. Vimos que precisamos preparar e conhecer essa empresa, e quando tiver pronto, a gente começa a colocar as pessoas trans dentro. Não adianta jogar diversidade se não houver um ambiente inclusivo de verdade. Aprendemos que precisa estar bom pra ambos os lados.
Maite: Tem uma frase da CEO da Uber que diz assim: ‘diversidade é quando a gente convida a pessoa para a festa. Inclusão é quando a gente tira para dançar’. Daí, uma vez eu fui dar uma palestra, e veio uma pessoa que tinha deficiência auditiva me procurar. Ela disse que essa frase não era tão verdadeira como parecia. Eu quis saber por que, e ela me respondeu: ‘não adianta me chamar pra dançar, porque eu nem estou ouvindo a música’.
Então, você tem que mais do que chamar pra dançar, porque tem gente que não escuta, outros não dançam porque nem gostam daquele ritmo.
Tem outra frase que eu gosto, da americana Nichole Marshall. Diz assim: ‘diversidade é quando a gente conta as pessoas’. E, acho que as empresas brasileiras estão nesse momento, que é fazer um censo interno, quebrar o pescoço, um exercício que a gente não fazia antes. Quantas pessoas negras temos aqui na empresa? Onde elas estão? Elas estão atingindo a liderança? Fazendo plano de carreira? Se não, qual o motivo se temos um país onde 56% da população é negra? Onde estão esses talentos? Onde estão as pessoas trans, migrantes?
É importante olharmos, ver se só tem o mesmo perfil na empresa. Em alguns lugares, como na Coca-Cola (que evoluiu e aprendeu com os erros), o time de diversidade deles era tão igual que eles
dobravam a camisa do mesmo jeito, a única coisa diferente era a cor da sola do tênis. Até o corte de cabelo era igual. A marca evoluiu e viu que, para falar em diversidade, tem que ter diversidade dentro.
Eu acredito na frase da Nichole Marshall, de contarmos as pessoas. Mas, inclusão, que é o que eu acredito de fato, é quando a gente para de contar as pessoas e as pessoas contam.
Ainda que você não contrate uma consultoria para levar a diversidade para dentro do seu negócio, se você consegue transformar o seu ambiente com segurança psicológica, políticas afirmativas, ouvidoria realmente atenta aos casos de violência e violação, zero discriminação, naturalmente, começa a pipocar a diversidade. Esse é o melhor aprendizado que eu levei para a vida. Outra coisa importante: nunca é tarde pra começar, não tem um momento certo de começar.
Leo: Essa mudança não é só uma onda, né?
Maite: É para sempre, não pode ser moda. E as empresas estão entendendo isso, e colocando em seu DNA. Antes, ficava no RH, Marketing, Responsabilidade Social. Agora, elas estão vendo que diversidade e inclusão precisa estar em tudo. Nos Facilities, por exemplo. Vejam os supermercados, eles têm visto que não adianta contratar uma empresa de segurança, se ela não compartilhar da sua crença, dos seus valores. Por isso, ainda vemos violações, casos de morte, atrocidades e, se a empresa não pensa nisso, ela é corresponsável por essa situação. Tem que se preocupar com valores das outras empresas com quem você faz ponte.
Leo: Ouvi que vocês têm um plano de fazer uma experiência internacional, de levar vagas para outros países. É verdade?
Maite: Sim, a gente ia fazer isso no ano passado. Por causa da pandemia, tivemos que adiar. Estamos aprendendo a conviver nessa situação caótica ainda, mas pode ser que lancemos no segundo semestre. É o TransJobs, uma demanda que vem das nossas empresas multinacionais, já que não tem projeto parecido com esse fora. Para isso, fechamos parceria com o Consulado Britânico, que está fazendo toda a tradução do nosso site, que tem muita coisa. Acho que até o final do ano, pessoas trans do mundo inteiro poderão participar da TransEmpregos. Vai ser muito legal.
Leo: E quem vai ajudar nessa empreitada?
Maite: É tudo voluntário, tudo é grátis. Se alguém quiser vir ajudar, é no voluntariado.
Leo: Por mais que uma empresa tenha uma comunicação muito bem-feita, é no convívio que a inclusão se dá. Não adianta só a comunicação funcionar. Como a gente pode tornar o convívio de colegas trans mais harmonioso?
Maite: Lendo tudo que tem de cartilha, pesquisando no Google (que é parceiro da TransEmpregos), assistindo vídeos… Hoje em dia, não dá pra dizer que você não sabia de algo. Na TransEmpregos, criamos o projeto Agora Vai, que é uma cartilha voltada para profissionais trans e outra para as empresas. Falamos como lidar, das especificidades, de como as questões de diversidade podem ser trabalhadas de maneira mais potente. A cartilha foi feita junto do Fórum de Empresas, das 17 maiores empregadoras de pessoas trans. Tem todo o bê-á-bá explicando: banheiro, benefícios, licença paternidade, maternidade, etc. Por exemplo, se um homem trans deseja ter um filho e vai gestar, como ele fica depois? Porque ele é um homem, mas vai precisar de uma licença maternidade, né? Algumas empresas inteligentes, inclusive, já estão equiparando isso, dando o mesmo tamanho de licença por entender que pais e mães devem ajudar desde o início.
Leo: agora, mesmo a cartilha, por mais abrangente que seja, a gente sempre tem novas perguntas…
Maite: Quando a gente já sabe as respostas, as perguntas já mudaram. Não adianta ficar só decorando, copiar o amiguinho, a empresa do lado. Tem que fazer o seu caminho e buscar a sua história na inclusão.
Leo: Desde 2013, tenho visto mais literatura de pessoas trans. Para quem quer conhecer mais sobre identidade de gênero, tem alguma coisa que você tá lendo e pode recomendar?
Maite: tem o livro do Reinaldo Bulgarelli – Diversos somos todos, que abre muitas portas pra quem trabalhar com esse assunto. Tem um curso maravilhoso do Mais Diversidade/Aberje, do qual eu sou professora e está na segunda turma. Lá, nós falaremos de transversalidade, interseccionalidade. Tem vários cursos gratuitos também.
Outro livro maravilhoso é o Vidas Trans – A coragem de existir, que conta a história de quatro pessoas: Amara Moira, Márcia Rocha, T. Brant e João W. Nery – que não está mais aqui entre a gente, mas foi um dos fundadores da TransEmpregos.
No site da TransEmpregos, a gente divulga uma bibliografia completa e acho que é bom conhecer, furar as bolhas, escolher uma rede que você goste: no LinkedIn, por exemplo, tem a Gabriela Augusto, que entrou como a segunda trans Top Voice da rede (Maite foi a primeira). No Insta também tem muita gente para seguir.
Conheça os conteúdos, fique perto, isso faz com veja que existem outras possibilidades, maneiras de ser, pensar, se colocar no mundo.
Assista ao Roda Vida com a Erika Hilton. É uma lição que essa mulher tão potente e guerreira traz, uma visão nova de mundo. Assim como a deputada Erica Malunguinho. Sigam pessoas trans. Consumam o que elas têm pra pensar. Fure as suas bolhas que você vai se surpreender com as alegrias que vai encontrar na sua própria vida.